sábado, 9 de maio de 2009

O HOMEM QUE NÃO SE COMPADECE DOS MORTOS

Assim fiquei por um bom tempo em cima da cama. Invertebrado, como se no corpo me faltasse vida, com um pouco de fome e muito cansaço. As roupas se empapeciam por entre meus vãos. Meus antebraços estavam moídos embaixo de toda minha massa, uma massa inválida, reduzida, de bruços, quase penada. Esperei muito para convencer-me que deu certo, mas que decerto não valia à pena. Lamentar pelos outros, e perder a vida por ocasião de infaustos...

Meus chinelos desabavam dos pés e atingiam o chão como decreto da minha fraqueza. Era assim que eu cairia diante de vós. Como um calçado inválido, que já não veda a pele fria e cede diante da morte. Por sobre mim o vento trazia o suor de todo um verão. E junto com ele me atropelavam histórias, odores bem conhecidos e escárnios. A vida invadia meu submundo de tristeza, e uma fria mensagem ressoava entre a franja do travesseiro e a minha orelha: “Você é o único: O homem que não se compadece dos mortos”. Da mesma forma o rebarbe da cortina. Eu estava frito...

Não sabia, na mocidade, nenhum bocado sobre isso, mas já espetava minhocas em crucifixo, ponta de caniço, talo de roseira. Bobeira, sim. Mas, para mim, motivo de sorriso. Para o meu amigo, o Matador de Bichos Rasteiros, um capricho. Eu me sentia tão mais vivo com a morte! Tinha sorte, tinha idade. Naquele tempo esse vento escarnecido e violento, era como uma brisa sem sentido. Se eu soubesse que hoje esse maldito sopro invadiria meu quarto, já o haveria matado também. De esquecimento. Fui eu quem pôs fim a uma vida inteira de erros. Minhocas são a síntese do Homem. Tanto na questão diacrônica como na visão sensata. São corpos afilados onde a boca se confunde com a culatra, e o pensamento, se esvai por sacrifícios. Na mesma linha: Homens tem ofícios, Minhocas orifícios. O que é isso? Só o começo.

Depois vieram os pequenos bichos. Na ordem sucessiva: Cães, gatos e outras vidas. Sem piedade alguma, sem peso na consciência ou insônia. Água, sal, amônia. Um pedaço de carne com peçonha. Um filete com pó de belladonna, um coquete de mercúrio, cicuta, e até carbono de carro. Não foi de todo rude estudar veneno. Alfinete no feno, Belok-zoc na lavagem. Morte por paragem, epilepsia, surto e diarréia. Toda tarde uma estréia, no espetáculo agudo da minha idéia. Eu, o jovem mais frio e matador da cidade.

Já é o bastante, mas não se inculca por prefácio dessa doideira. Adulterei mamadeira, pus dejeto em lancheira, e, toda a sexta feira botava aquilo ou isto na merenda. Ora uma pedra, ora um rato. Ora cinqüenta e cinco mosquitos, ora um sapato. Até que, do referido fato, engasgou-se um novato. De óculos grotescos, cabelo russo, expressão neutra. Vieram os paramédicos, o pessoal do prédio e demais curiosos. O Novato ficou duro. E depois disso corou muito. Abriram-lhe uma fração do pescoço, e, para quem havia engolido um osso, ficou apenas o verbete: “Viu no que dá ser guloso?”. Eu ria. Ria como um sonso.

Não queira saber! Depois dos animais pequenos vieram tantos outros, em ocasiões tão mais abrangentes... Sumiço às cabras do vigário, Progesterex em aviário, café em aquário e até um dromedário. Não duvide que pus fim à todos eles. Sempre altivo, criativo e bruto. No meu caminho nunca houve um vulto, recessão ou arrependimento. Fiz maravilhas na arte do abate, do cheque mate, do arrebate. Depois de tudo ainda tomava um mate, sossegado. Um caçador de alegrias. Um adorador do vermelho-tomate. Ou sangue, na linguagem mais besta.

Demorou até que parasse com isso. Mas, quando então, aposentei o bodoque, a arma de contrachoque a espingarda. Dissipei numa só tarde mil arapucas, mil emplastros. Meti tudo num saco, dei nó e benção e empurrei num buraco. Acabou-se a vida de assassino. Voltei a ser um menino. A sentir frio nos pés e falsa sensação de amortecimento. De quando em vez ia ao centro, comprar blusas, armarinhos, ver o circo. “Que macaco, tagarela! Que leoa preguiçosa!” Mas que nada! Nunca mais me ocorreu matar tais bichos. A não ser um passarinho aqui ou acolá para relembrar o vício. Um ou dois, vocês hão de convir que é mixaria! Que dia é hoje? É verão? Olhe pela janela e veja se não. Drummond de Andrade era um, que só contava andorinha na mão.

Uma vez curado da peraltice, fiz o que se faz na meninice, que é namorar, ir a bailes. Amiguei-me mais da grande humanidade, conheci parcela importante da população. Aquele Novato, por exemplo, tinha um nome: Konstantin Alexandrovich. Conheci-o, numa peça. Perguntei-lhe, por maldade, sobre a cicatriz no pescoço. E Ele respondeu que foi um acidente, ainda na escola. Ri à beça. Mas, depois disso, encrespei o rosto, falei “maldito osso”, e viramos amigos. Naquele ano bebemos todas. No ano seguinte também. E assim, por se dizer, continuamos bebendo.

No entanto, e, enquanto isso, pessoas vêm morrendo. Hora por morte natural, hora por acidente. Também, pessoas vêm nascendo. Do mesmo efeito sofrem as flores que murcham e florescem. Os moinhos que sobem e descem. E os cata-ventos. Mas é pelos dutos da rua que somem os odores: casas que, pelos canos, fogem; vidas, que descem pelo ralo. E, neste contexto, também somem os Homens, um por um aos seus jazigos. Até se confundirem novamente com as Minhocas, que, em festim, cavoucam um labirinto em suas caixas torácicas, ocupando exatamente o lugar onde batia o coração!

Nada mais que fatos. Pois bem. E porque não choro? Apenas meu corpo amolece e me arrebata a preguiça. Não mando rezar missa, e nem faço matéria de cobiça. Pessoas vêm morrendo de injustiça. O jornal traz na capa: “Degustador de vinhos se afoga com uma cortiça”. Ou: ”O sub-prefeito morreu na Suíça”. E levam consigo os seus pertences. Tudo para o grande labirinto da terra, lá junto das bactérias.


P. Leite

3 comentários:

Anônimo disse...

há tempos venho me perguntando: Por que uns morrem e outros nascem?
até que um dia um velho me respondeu, "porque não há lugar pra todo mundo no planeta". Parecia tão simples mas não era.
Abraço Pedro Bó.

cadu disse...

essa tática de café em aqueário funciona?
uihaeuiea

Anônimo disse...

mto complexo para um transeunte